Desastre Aéreo

. quarta-feira, outubro 10, 2007

“Atenção, senhores passageiros! Última chamada para o vôo 776542, com destino a São Paulo, no portão 3.”


- Ai! Eu sabia que essa idéia de dar uma cochilada à tarde ia ser um problema. Eu não te disse Vieira?
- Dizer disse, Roberta. Mas com aquela cara de sono e com as olheiras parecendo um jogador de futebol americano pintado para o jogo, você não ia agüentar virar à noite terminando a sua reportagem. Se bem que, nessa de você dormir, eu aproveitei e tirei umas fotos suas com uma “cara de travesseiro” bem engraçadas.
- Vieira! Eu não acredito! Eu morrendo de preocupação com a minha reportagem sobre a crise aérea, depois de entrevistar o ministro da aeronáutica, com o meu deadline estourando e você fazendo gracinha com a máquina fotográfica!


“Atenção, senhores passageiros! O vôo 776542, com destino à São Paulo se prepara para decolar.”


- Corre, Vieira! Corre! Se não a gente perde o vôo, chegamos atrasados na redação e ainda corremos o risco de perder o emprego. Você sabe como essa reportagem sobre o acidente com a aeronave da Vai é importante pra minha carreira.
- Eu sei Roberta. Eu sei. Agora corre!
- Senhores, por favor, vocês poderiam me mostrar as suas passagens?
- Cadê as passagens, Vieira?
- Estão aqui, Roberta. Pronto. Ta tudo ok, moço?
- Deixe-me ver... Ok. Vocês podem embarcar. E olha, vocês deram sorte hoje. Esse é o único vôo que sai no horário nos últimos dez dias. Que sorte, hein?
- É. Viu que beleza, Roberta?
- Tô vendo, Vieira. Agora vamos.


Dentro da aeronave, os dois, jornalista e fotógrafo, ocupam seus devidos lugares. O avião, o único a sair misteriosamente no horário certo nos últimos dez dias, começa a se mover na pista.


- Senhores passageiros, aqui quem fala é o comandante Marins. Incrivelmente nossa aeronave consegue partir no horário em um dia onde todos os outros vôos se atrasaram em cerca de três horas. Nossa previsão de tempo até aterrissarmos em São Paulo é de aproximadamente uma hora e quarenta minutos. O tempo está um pouco nublado, podendo haver algumas pancadas de chuvas. Qualquer eventual problema, chame algum dos comissários de bordo. A Vai agradece a sua preferência.
- Vieira, você comprou uma passagem da Vai ?! Eu não acredito. O avião deles caiu na semana passada e você ainda tem a coragem de comprar uma passagem “da morte”...
- Roberta, você está fazendo tempestade em copo d´água. E tem mais: já que você está fazendo uma matéria sobre uma crise gerada pelo acidente da Vai , nada melhor do que passar pela experiência de viajar pela Vai- pós desastre.
- Olha, Vieira. Olha... Tá bom. Mas se esse avião cair você vai ser o culpado, ouviu?
- Sem problemas, Robertinha. Se o avião cair, você pode me culpar. Mas não se preocupa: do chão não passa.
- Aiiii!


Entre as risadas de Vieira e os gritinhos e tensões de Roberta, o avião ganha os ares. Entre nuvens um pouco densas, o comandante Marins tenta um contato com a torre em Brasília.


- Vitor Alfa Índia. Chamando torre em BSB. Atenção torre. Preciso de informações sobre o clima e o tráfego aéreo.


Silêncio.


- Atenção, torre. Vitor Alfa Índia tentando contato. Precisando de informações sobre clima e tráfego aéreo.


Mais silêncio.


A falta de contato com o controle de tráfego aéreo deixa o comandante Marins preocupado. Com o tempo fechando, a baixa visibilidade e o medo adquirido por causa das páginas lidas nos jornais, o comandante principia um suor pelo corpo.


- Atenção, torre. Aqui é Vitor Alfa Índia...


Sem resposta.


- Atenção, senhores passageiros. Aqui é o comandante Marins. Perdemos contato com a torre, o tempo fechou e, como os horários dos vôos estão completamente alterados, é difícil prever onde podem estar outras aeronaves. Se alguém sabe orar, esse é um bom momento.
- Aí, Vieira. Eu não falei pra você que a gente ia morrer?
- Fica calma, Roberta. Você não entende que isso acontece diversas vezes aos dias, todos os dias. É só ler os jornais. Parece que nem é repórter.
- Ah, Vieira! Nem vem. Vai dizer que não está com um “medinho”?
- Eu não. Eu tenho é que aproveitar todos os momentos pra tirar boas fotos. E por falar nisso, eu vou aproveitar o momento para tirar umas. Quem sabe eu não pego umas boas expressões de pavor. Quem sabe a tua?
- Ahhhh!


Broingh!!! Um tremor chacoalha o avião. Os olhos saltam para fora de cada rosto, menos do Vieira, é claro. Ele aproveita e tira umas fotos.


- Meu pai, o que foi isso?
- Eu não quero morrer. Eu não quero.
- Ainda tenho tanta coisa pra fazer. Comprar um carro importado, casar, trabalhar na Globo. Ainda não pode ser a minha hora.
- Isso, mocinha. Vira só um pouquinho de lado. A sua cara de medo fica mais apavorante de perfil. Calma, ou melhor, olha o passarinho.
- Atenção senhores, passageiros. Ainda não sabemos o que aconteceu, mas perdemos estabilidade. Na verdade, perdemos as duas asas. Na verdade, senhores passageiros, vocês ainda têm cerca de oito mil pés de vida. Orem, gritem, se desesperem. Enfim, esbocem suas últimas emoções.
- Ai, Vieira, e agora? Eu não posso morrer. Vieirinha, o que eu faço?
- Roberta. Entenda que essa é uma oportunidade única. Faça seu trabalho de jornalista. Aproveita a emoção do pessoal. Eu estou tirando umas fotos. Quem sabe eu não ganho um Prêmio Esso? Faça o mesmo.


De alguma forma, a frieza de Vieira mexeu com a repórter.


- Rapaz, você gostaria de deixar uma última mensagem para algum querido?
- Como é que é?
- Uma mensagem. Ainda tem tempo. Acho que uns 7500 pés.
- Bom, então tá. Eu estou indo pra São Paulo para pedir a Ana Paula em casamento. Estamos namorando há uns nove anos e agora eu acho que chegou o momento. Ou melhor, tinha chegado. Aninha, eu te amo!
- Senhor, agora que você está prestes a morrer, se arrepende de não ter feito algo na vida?
- Eu me arrependo de não ter dito à Odete o quanto ela era importante para mim. Ela era única. Ninguém como “a minha velha” pra estar ao meu lado me fazendo sorrir. Eu sou um velho ranzinza que nunca percebeu o valor da esposa.


Ela foi correndo falar com o Vieira.


- Vieirinha, você não sabe. Tem cada história aqui de partir o coração. Acabei de falar com uma senhora que tem como única companhia uma gatinha siamesa e se ela morrer ninguém poderá alimentar o bichinho. Não é comovente?
- É, parece que você tá indo bem, hein? Nada muito relevante, mas tocante.
- Como assim irrelevante, Vieira?
- Roberta, o que vale é vender o jornal não acha?
- É... Ah, e sabia que esse vai ser o maior acidente da história? Eu contei um por um os passageiros. Tirando eu e você, somos 155. Bom, não? Ou melhor, interessante, não é?
- É. Boa verificação. Agora continua aí que eu vou tirar mais algumas fotos. Temos apenas dois mil pés de vida. Então, vai lá. Ah, não se esqueça de colocar o gravador em um caixa bem resistente. Se você perder tudo isso tua morte vai ser em vão, ouviu?


Dois mil pés. Mil e seiscentos pés. Oitocentos pés. Quinhentos e vinte e cinco pés. Cabruuuum!!!


Para completar o desastre, a aeronave da Vai se espatifou no meio da Avenida Paulista. Mais impressionante que isso foram as fotos e um gravador cheio de entrevistas encontrados entre os escombros pelos bombeiros. E não é que a última frase da tal jornalista Roberta Bolaños Gomes e Silva foi: “Não se esqueçam de me premiarem com um Prêmio Esso post mortem, ok? Ei, Vieira, tira uma última foto aqui”.